Charles e seu convidado.
Creio que, devido a esta narrativa que empregarei, muitos irão considerar-me louco e não me darão crédito, uma vez que eu mesmo tendo percebido o fato através de meus sentidos não pude concebê-lo como realidade. É fato, contudo que não sonhava, estava desperto, e aqueles que permeiam meu meio social ou aqueles mais achegados há minha pessoa concordam que não sou maluco, não a este nível de delírio psicótico. A sanidade é uma matéria por demais inclassificável, uma vez que leva-se em conta os valores culturais e históricos que constituíram a subjetividade do sujeito, contudo os paradigmas de tais meios sociais costumam desequilibrar até mesmo os maiores céticos ou estudiosos intelectuais psiquicamente.
O que irei relatar ocorreu em uma típica quarta-feira, eu, Charles Edgar M. calculava como de costume as contas do mês. Desta maneira distribuía os valores pela ponta célere do lápis exatamente as 19:00 horas, um de meus últimos charutos crepitava sob o cinzeiro de lápis-lázulis chileno. Se não me falha a memória, sorvia a quinta xícara de café, café preto, café forte, café bom. No rádio uma antiga canção dos “Doors” me ajudava a manter a concentração e aguçava minha irrequieta mente, quebrando o monótono som do rabiscar característico do grafite. Ao final deste trabalho aritmético cotidiano, fui tomado pelas ânsias do desespero, pensei “O que será de ti, oh minha alma?”, pensei na esposa que alegre dormia, pois aquilo que mais temia me sobreveio, estava quebrado era o fim eu estava no fundo do poço. Aquele poço vil e asqueroso do qual nós, burgueses modernos fugimos como a noite que foge do Sol. Em meu agonizante momento urbano rebusquei no velho móvel da sala a empoeirada garrafa do licor de Baco e entreguei-me a bebedice. O que fui fazer com minha medíocre vida? Não concebia solução e de vergonha bebia e aos poucos senti vergonha por me embriagar. Num ultimo suspiro falei eu para a noite: “Quem me dera ser bravo como o leão e rico como Salomão o sábio, o que daria eu para tanto? Sabe tu noite?”. E dessa forma, selei está frase com um beijo no quase esgotado cantil de água ardente.
Neste ponto, amigo meu, é que temo ter confundido o mundo onírico e indecifrável dos sonhos com a mórbida realidade, pois o metafísico ousou a perturbar meu cotidiano malditoso. Devo afirmar novamente que não sou louco e nunca tive por habito pregar peças melindrosas, cabe ao ilustre leitor julgar como queira aquilo que será exposto nas próximas linhas.
Após aquele lamuriento gole e de meu gracejo para a escuridão um cheiro pungente e acre, de caráter altamente ofensivo penetrou o recinto e invadiu minhas narinas. Um som sinistro se fez ouvido na varanda, sibilante, um vago sussurro de uma voz peculiarmente profunda e profana difamava um horrendo “sim”. Sobressaltei-me e a passos medidos dirigi-me até o local. Um antigo carvalho projetava suas imensas sombras noturnas pelo jardim, apoiado sob seu poderoso tronco um homem de idade avançada e de baixa estatura se encontrava. Este senhor trajava um fraque polidamente preto, por debaixo deste vestia uma elegantíssima camisa branca de linho fino e uma bela gravata champanhe pendia luxuosa de seu estranho pescoço. Suas mãos encontravam-se recobertas por pesadas luvas negras e estavam fechadas uma junto da outra na frente de seu abdômen. Sob a cabeça se projetava uma ilustre cartola italiana que emitia uma sombra melancólica em sua longa barba branca. Apenas o bigode deste velhote era de coloração negra, o que dava um tremendo contraste. O nariz era extremamente adunco e os olhos, ah aqueles olhos, eram negros como a escuridão, profundos como o abismo e velhos como a lua.
Perguntei com a voz tremula, “Quem é você estranho, que aparece na calada da noite como vindo de uma fabula qualquer?”. A resposta foi um simples “aham”, como quando pigarreia-se para limpar a garganta. Confesso neste momento que minhas pernas tremeram e senti arrepiar o ultimo fino fio de cabelo em meu pescoço. Insisti na pergunta novamente.
E a voz que ouvira em outra hora soou profunda e horrenda como antes, assim como fora terrível os gritos das bruxas nas antigas fogueiras de Salem era assim temido a voz de meu inusitado convidado. “Mefistófeles, é assim que posso ser chamado, o antigo, o antediluviano, Enchanteur, autor de Batrachomyomachia[1], aquele que circunda a terra, o açoite de Jó. O nome não é lá uma grande cousa, por conseguinte é apenas o rotulo que se estraga e se perde no passar das eras. Agora escuta tu, filho de Adão que foi o primeiro a receber a proposta, escuta com atenção para que não te percas. Sabes tu leitor das escrituras, amigo de Pavlov, conhecedor de Mr. Kant e estudioso de Goethe sobre as dificuldades desta vida pentagonal que imbuiu ao homo-sapiens nosso ilustre ditador. Tu, homem penseroso de testa larga, braços fortes e raciocínio sagaz saberás escolher de forma prudente a respeito das considerações que te farei. Atentai, pois muitos sábios como tu ouviram estas palavras e se tornaram grandes entre os mortais”.
Após dito o não dito, o eloqüente ancião iniciou sua lenta marcha em minha direção, lenta uma vez que o velhote mancava da perna esquerda e só nesse momento reparei em suas galochas desgastadas e imundas. Atrevo a dizer que já neste ponto não conseguia mais me mexer e minha mente parecia paralisada, cogitei gritar, mas de que adiantaria? Um medo irracional tomava conta de meu ser, como da presa próxima a seu algoz. Então, sem reação apenas escutei a proposta do fétido cavalheiro. “Ouro? Jóias? Força? Poder? Mulheres? Que queres? É só a mim dizer. Trago-te reinos tesouros sem fim, Charles o Grande soa bem para mim. Que queres tu? È somente pedir, em troca nada quero somente assine aqui”. Estendeu o braço e puxou um velho papiro enrolado que trazia por baixo do fraque, um manuscrito por demais antigo. Abriu-o com cuidado e revelou-me o conteúdo, no topo encabeçando a papelada jazia em caixas altas cerca de cinco ou seis runas em uma língua que acredito nunca ter sido ouvida por seres deste mundo. Abaixo constava uma enorme lista com nomes diversos em diferentes escritas, por sob meu olhar gravei na memória alguns daqueles nomes e ousarei transcrevê-los aqui, Alester Crowley, Dorian Gray, Bragolin e Vlad Tepes. Então o velho concedeu-me uma pena negra e instruiu-me da seguinte maneira: “Perfura teu dedo indicador, pois estas cousas precisam ser escritas com sangue, às tintas modernas não têm lá muita garantia de validade e se decompõe em poucas eras. Mas vamos logo não nos atrasemos por certo todo o ouro e todas as mulheres o aguardam ansiosos”.
Enquanto meu carrasco dilacerava-me com suas venenosas palavras, minha mente continuava torpe, sem conteúdo e com a mão tremula apanhei a pena enegrecida. E quando estava pronto para iniciar o litúrgico ritual fúnebre, minha consciência foi tomada por uma paz transcendental e as seguinte palavras tomaram forma; porque os maus já armaram os seus arcos e de tocaia apontam suas flechas para atirar nas pessoas direitas. Então chorei, como não fazia a anos, larguei a pena e a garrafa de bebida no chão batido e o estardalhaço do vidro rachando ecoou pela noite. Disse ao velhote manco e nanico, “Essa noite perde-se a viagem, pois nem mesmo o lobo pode matar o cordeiro quando este é santo”. Dito isto o Velho cuspiu no chão, fez o sinal da cruz e esvaiu-se em fumaça. Voltei para dentro de casa, deitei-me com minha esposa e dormi o sono dos justos. Na manhã seguinte, recontando a soma que tanto me incomodara na noite anterior percebi que havia feito um calculo enganoso e a situação não era tão feia. Nunca mais vi o velho e oro a Deus para que nunca mais o veja nem mesmo aqui, em meio leito de morte, salvo estas linhas para meus netos e que eles lembrem-se de viver em paz com suas esposas e filhos e que não ousem barganhar com o predador da aurora do mundo como fez seu patriarca.
C.E.M.
O que irei relatar ocorreu em uma típica quarta-feira, eu, Charles Edgar M. calculava como de costume as contas do mês. Desta maneira distribuía os valores pela ponta célere do lápis exatamente as 19:00 horas, um de meus últimos charutos crepitava sob o cinzeiro de lápis-lázulis chileno. Se não me falha a memória, sorvia a quinta xícara de café, café preto, café forte, café bom. No rádio uma antiga canção dos “Doors” me ajudava a manter a concentração e aguçava minha irrequieta mente, quebrando o monótono som do rabiscar característico do grafite. Ao final deste trabalho aritmético cotidiano, fui tomado pelas ânsias do desespero, pensei “O que será de ti, oh minha alma?”, pensei na esposa que alegre dormia, pois aquilo que mais temia me sobreveio, estava quebrado era o fim eu estava no fundo do poço. Aquele poço vil e asqueroso do qual nós, burgueses modernos fugimos como a noite que foge do Sol. Em meu agonizante momento urbano rebusquei no velho móvel da sala a empoeirada garrafa do licor de Baco e entreguei-me a bebedice. O que fui fazer com minha medíocre vida? Não concebia solução e de vergonha bebia e aos poucos senti vergonha por me embriagar. Num ultimo suspiro falei eu para a noite: “Quem me dera ser bravo como o leão e rico como Salomão o sábio, o que daria eu para tanto? Sabe tu noite?”. E dessa forma, selei está frase com um beijo no quase esgotado cantil de água ardente.
Neste ponto, amigo meu, é que temo ter confundido o mundo onírico e indecifrável dos sonhos com a mórbida realidade, pois o metafísico ousou a perturbar meu cotidiano malditoso. Devo afirmar novamente que não sou louco e nunca tive por habito pregar peças melindrosas, cabe ao ilustre leitor julgar como queira aquilo que será exposto nas próximas linhas.
Após aquele lamuriento gole e de meu gracejo para a escuridão um cheiro pungente e acre, de caráter altamente ofensivo penetrou o recinto e invadiu minhas narinas. Um som sinistro se fez ouvido na varanda, sibilante, um vago sussurro de uma voz peculiarmente profunda e profana difamava um horrendo “sim”. Sobressaltei-me e a passos medidos dirigi-me até o local. Um antigo carvalho projetava suas imensas sombras noturnas pelo jardim, apoiado sob seu poderoso tronco um homem de idade avançada e de baixa estatura se encontrava. Este senhor trajava um fraque polidamente preto, por debaixo deste vestia uma elegantíssima camisa branca de linho fino e uma bela gravata champanhe pendia luxuosa de seu estranho pescoço. Suas mãos encontravam-se recobertas por pesadas luvas negras e estavam fechadas uma junto da outra na frente de seu abdômen. Sob a cabeça se projetava uma ilustre cartola italiana que emitia uma sombra melancólica em sua longa barba branca. Apenas o bigode deste velhote era de coloração negra, o que dava um tremendo contraste. O nariz era extremamente adunco e os olhos, ah aqueles olhos, eram negros como a escuridão, profundos como o abismo e velhos como a lua.
Perguntei com a voz tremula, “Quem é você estranho, que aparece na calada da noite como vindo de uma fabula qualquer?”. A resposta foi um simples “aham”, como quando pigarreia-se para limpar a garganta. Confesso neste momento que minhas pernas tremeram e senti arrepiar o ultimo fino fio de cabelo em meu pescoço. Insisti na pergunta novamente.
E a voz que ouvira em outra hora soou profunda e horrenda como antes, assim como fora terrível os gritos das bruxas nas antigas fogueiras de Salem era assim temido a voz de meu inusitado convidado. “Mefistófeles, é assim que posso ser chamado, o antigo, o antediluviano, Enchanteur, autor de Batrachomyomachia[1], aquele que circunda a terra, o açoite de Jó. O nome não é lá uma grande cousa, por conseguinte é apenas o rotulo que se estraga e se perde no passar das eras. Agora escuta tu, filho de Adão que foi o primeiro a receber a proposta, escuta com atenção para que não te percas. Sabes tu leitor das escrituras, amigo de Pavlov, conhecedor de Mr. Kant e estudioso de Goethe sobre as dificuldades desta vida pentagonal que imbuiu ao homo-sapiens nosso ilustre ditador. Tu, homem penseroso de testa larga, braços fortes e raciocínio sagaz saberás escolher de forma prudente a respeito das considerações que te farei. Atentai, pois muitos sábios como tu ouviram estas palavras e se tornaram grandes entre os mortais”.
Após dito o não dito, o eloqüente ancião iniciou sua lenta marcha em minha direção, lenta uma vez que o velhote mancava da perna esquerda e só nesse momento reparei em suas galochas desgastadas e imundas. Atrevo a dizer que já neste ponto não conseguia mais me mexer e minha mente parecia paralisada, cogitei gritar, mas de que adiantaria? Um medo irracional tomava conta de meu ser, como da presa próxima a seu algoz. Então, sem reação apenas escutei a proposta do fétido cavalheiro. “Ouro? Jóias? Força? Poder? Mulheres? Que queres? É só a mim dizer. Trago-te reinos tesouros sem fim, Charles o Grande soa bem para mim. Que queres tu? È somente pedir, em troca nada quero somente assine aqui”. Estendeu o braço e puxou um velho papiro enrolado que trazia por baixo do fraque, um manuscrito por demais antigo. Abriu-o com cuidado e revelou-me o conteúdo, no topo encabeçando a papelada jazia em caixas altas cerca de cinco ou seis runas em uma língua que acredito nunca ter sido ouvida por seres deste mundo. Abaixo constava uma enorme lista com nomes diversos em diferentes escritas, por sob meu olhar gravei na memória alguns daqueles nomes e ousarei transcrevê-los aqui, Alester Crowley, Dorian Gray, Bragolin e Vlad Tepes. Então o velho concedeu-me uma pena negra e instruiu-me da seguinte maneira: “Perfura teu dedo indicador, pois estas cousas precisam ser escritas com sangue, às tintas modernas não têm lá muita garantia de validade e se decompõe em poucas eras. Mas vamos logo não nos atrasemos por certo todo o ouro e todas as mulheres o aguardam ansiosos”.
Enquanto meu carrasco dilacerava-me com suas venenosas palavras, minha mente continuava torpe, sem conteúdo e com a mão tremula apanhei a pena enegrecida. E quando estava pronto para iniciar o litúrgico ritual fúnebre, minha consciência foi tomada por uma paz transcendental e as seguinte palavras tomaram forma; porque os maus já armaram os seus arcos e de tocaia apontam suas flechas para atirar nas pessoas direitas. Então chorei, como não fazia a anos, larguei a pena e a garrafa de bebida no chão batido e o estardalhaço do vidro rachando ecoou pela noite. Disse ao velhote manco e nanico, “Essa noite perde-se a viagem, pois nem mesmo o lobo pode matar o cordeiro quando este é santo”. Dito isto o Velho cuspiu no chão, fez o sinal da cruz e esvaiu-se em fumaça. Voltei para dentro de casa, deitei-me com minha esposa e dormi o sono dos justos. Na manhã seguinte, recontando a soma que tanto me incomodara na noite anterior percebi que havia feito um calculo enganoso e a situação não era tão feia. Nunca mais vi o velho e oro a Deus para que nunca mais o veja nem mesmo aqui, em meio leito de morte, salvo estas linhas para meus netos e que eles lembrem-se de viver em paz com suas esposas e filhos e que não ousem barganhar com o predador da aurora do mundo como fez seu patriarca.
C.E.M.
[1] Batrachomyomachia (A Guerra dos Sapos com os Ratos) é um épico satírico grego atribuído a Homero.
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