Origem do Tempo em Dó Maior.


Certa feita perambulava pelos jardins oníricos e opalinos do paraíso, Lúcifer anjo de luz e pai dos obsessivos, buscando em sua angustiante existência algo que preencheria sua inaptidão para criar. De tal forma, moldava os sons de Deus criador, conforme lhe era permitido, fazia de Mis, Dós e Rés sustenidos, melodias de pompas inigualáveis e insuperáveis que embebia os ecos do infinito com jubilo sem fim. Um simples acorde de sua imaginação infinitamente limitada fazia ribombar os tímpanos impenetráveis dos incontáveis anjos. Tudo isso se sucedia na aurora das eras, antes do começo do fim. Ora, em sua contemplação perturbada, o ilustre menestrel avistara em meio aos deleites infindáveis uma peça arquitetônica ilustre por excelência e majestosa por exigência. Tal forma o paralisou em meditação e não mais cantou o rouxinol dos salões celestes, muito admirou-se e meditou por demoras milenares. Não obteve resposta diante deste enigma, não concebia entendimento deste objeto inusitado, não encontrava registro de tal monumento, não havia recebido instrução ou ouvido a respeito de espantoso e magnífico adorno. Não concebia o eloqüente bardo que se defrontava com o jubiloso e abençoado trono do Senhor, que situava-se em meio a local nenhum do universo bem facejo, sem parede, sem mobília, sem coluna. Por fim disse o infeliz: “Summa imperii[1]”. e sentou-se entoando uma execrável canção funesta, digna de dó, que convocava as hostes, arautos e poderes angelicais perante ao trono supremo. Tempestuosa fora a sinfonia e terrível era o sineiro, não demorou-se um pensamento para que o chamado fosse ouvido e todos os bem gracejos seres divinos ali formaram o inusitado sindicato. O compositor se vangloriou e descortinou a recém adquirida relação de poder conclamando para si o trono santo. A platéia estarreceu-se frente desta canção tão soberba e ocorreu que muitos não compreendiam sua lírica modorral, sendo assim, tocou somente a essência de apenas um terço da congregação. Ora, dentre os presentes estava Miguel, um dos primeiros príncipes, que ribombou como um trovão para o nefasto malbaratador: “Mens Legis,[2] proclama, ousas tu usurpar o intocável e qualificar o inconcebível?”. E assim, pela ponta da espada sob correntes fumegantes de diamantes nebulosos foi atirado dos céus o dragão mentido, faltante e sagaz. Ocorreu que em seu intimo espírito, questionou-se Miguel: “Não é pouco descaso e mínima punição feita a tal horrendo crime? Que pesar existe em cantar sobre a Pangea ou resfolegar-se pelo Pantalassa durante a eternidade?”.
A realidade por toda a redondeza piscou sete vezes e Miguel ouviu como som de um clarim a voz do Santo dos Santos: “Desce tu para as minas do Crepúsculo de onde se retiram os sonhos, na parte mais profunda encontrarás um poder ancião que ali jaz acorrentado e adormecido. Pega-o pelos pés e leva-o para a terra, ali tu quebrarás suas correntes e o acordarás. Atende ele por nome de Cronus e trará pesar sobre tudo que olhar. Nele o ansioso se contorcera e assim será o fim do caído, aquele que ungi”.
Procedeu assim Miguel e cada detalhe atentou sem nada esquecer.E sucedeu que muito se alarmou ao libertar o velho ancião coberto de lanugens. Com um impulso pré-estabelecido em sua psique conclui o afamado anjo: “Isto eu não poderia conceber, o fim já estava no começo e este nem mesmo chegou, agora começa as eras, na aurora de Cronus”.
[1] Poder supremo.
[2] O espírito da Lei.

Comentários

  1. O texto anterior do Pedro me fez pensar, então resolvi escrever uma fabula sobre a origem do tempo.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Caricaturesco

Desvia teus olhos. Ensaios de “Uma carta a espécie humana”

Alvor Terra de fábulas.