Rabiscos Felinos

Acredito desde muito moço que no decorrer de nossa passageira existência neste universo tão vasto e desconhecido, o Todo Poderoso, acaba por enviar seres celestes para que nos ilumine o caminho e nos ajude a carregar os fardos em nossos ombros. Em meu caso, um desses entes espirituais encerrava-se no corpo esguio e magricela de um misterioso gato preto o qual denominei Quixote, inspirado no antigo e eterno conto de Cervantes. Este enigmático animal revelou-se um fantástico companheiro em todas as horas da árdua labuta cotidiana que nos apregoa a vigília. Ironicamente, Quixote ultrapassava esta barreira imposta pela vigília e ia além, guiando-me em sonhos voluptuosos e mirabolantes passando por casebres escusos a pradarias oníricas. No limiar da transcendência cognitiva permitia-me caminhar ao seu lado nas crateras milenares da lua onde seu miados agudos ecoavam por eras sem fim. Contudo ao acordar no dia seguinte lá estava ele, sorrindo um ronronado característico em busca de um afago amigo e um pouco de alimento. O intrépido gato preto com suas orbitas oculares amareladas era por si só um mestre terapêutico. Quixote era capaz de suplantar as maiores teorias terapêuticas criadas pela racionalidade humana uma vez que minha amada e eu relaxávamos ao acariciar seu caloroso pêlo macio. O amigo me alegrava com um sorriso felino, exortava-me com um sibilar taciturno e ensinava-me com um olhar penetrante. Volta e meia me flagrava pensando nas lendas medievais nas quais diziam que gatos pretos eram na verdade bruxas disfarçadas para ludibriar a inquisição, tamanha inteligência me elucidava a criatura. Sozinho enquanto lia, o nobre felino me fazia companhia e em seus sentidos agudos sentia-me mais seguro como se por certo me protegia. Nossa amizade era tamanha que sonhávamos um futuro juntos, e lhe dizia que num amanhã vindouro ele deveria ensinar a meus filhos com tamanha dedicação as coisas da vida. E que um dia quando estive-se velho e gordo, eu contaria de sua historia para as gerações futuras. Nobre gato de fato.
Infelizmente toda historia tem um final e por certo todo anjo é minado de compromissos. Por mais que meus motivos egoístas o quisessem forçá-lo a permanecer ao meu lado os intuitos divinos divergiam de meu ego. Porém no fundo eu conhecia a verdade e sabia que havia outros infelizes como eu necessitando de seu auxilio. Dessa maneira ceifado foi o valoroso amigo de meu leito, meu convívio e desfalcado foi meu santuário, meu lar. Hoje não mais habita o gato comigo, hoje vivo sem miado, sem riso e sem seu gorgolejar.

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