Diário de um parafuso.


Viajei para as terras do norte, para o berço do imperialismo. Carregava em minha bagagem a ingênua pretensão de vislumbrar a totalidade de sua engrenagem. Contudo migrava em meu intimo a tola esperança idealista de conhecer e compreender a alma humana. A alma havia desaparecido com a ascensão do iluminismo e defendida pelo reducionismo médico, incentivado por sua vez pela corporação administrativa, transformando todo esplendor contido nos seres humanos em simples processos mecânicos. Não tardou para que as demais áreas científicas se unissem sob esta bandeira, para formarem a nova religião neo libertadora, a inquestionável ciência. Com este poderoso enredo, criava-se A Mákina, seu manual e sua engenharia de preservação das partes. Como toda instituição que se preze, A Mákina é portadora de extraordinários mecanismos de defesas que a exima de qualquer culpa. Estes mecanismos acabam por culpar meramente algumas partes da estrutura ou em contrapartida, a estrutura por inteira como se esta não pude-se ser modificada causando a comum sensação de conformismo.
Como resultado deste processo robótico e interconectado o fabuloso organismo humano passa da condição de ser racional para o claustrofóbico e inexpressivo caráter de um parafuso. E neste contexto passa a executar sua tarefa repetida e eternamente neste glorioso relampejar que chamamos vida. Foi ai, neste amontoado de aço e ferrugem que acabei por me estabelecer, como uma peça sobressalente ansiosa em se mostrar útil. De inicio investi grande parte de meu tempo em publicidade, afinal como poderia me destacar entre os demais parafusos? Sendo assim me auto qualificava, apontando as grandes qualidades que supostamente possuía. Após esta nefanda etapa, dei vazão o processo de venda, minha venda. Como minha alma já havia sido tomada pelo insano sistema, nada seria mais natural que vender meu amontoado corpóreo. Indiquei-me aos melhores empregos disponíveis, mesmo quando não se fazia necessária aquisição de mais parafusos. Insistia com meus compradores o real valor de um parafuso estrangeiro, de alta qualidade e duradoura garantia. A disputa entre os parafusos é coisa hilária e aquele que mais se vende mais se vangloria, contudo no fim de tudo sempre ela, A Mákina, é quem sai vitoriosa. Destruímos-nos e competimos cotidianamente para o beneficio desta velha gorda e ultrapassada, que nos manipula e explora, que nos suga e maltrata e a quem beijamos a sebosa mão. Como Chaplin retratou prodigiosamente em Tempos Modernos, estamos a mercê desta poderosa rede, não passamos de escravos da maquinaria, não passamos de ilotas cultivando subsistência alheia.
Uma vez admitido em determinada seção da engrenagem, deu-se inicio o meu oficio, e fui devidamente parafusado, apertado, condicionado, martelado, lustrado, ensinado, e reformado inúmeras vezes. Sentia-me um parafuso feliz, ao menos desempenhava uma função, criava desta forma uma ilusão mental de um futuro inatingível, instalando em minha estrutura de lata a esquizofrenia do século. A Mákina projetava um final feliz em seu parafuso enquanto sugava-lhe a ultima lasca de aço que poderia utilizar em seu beneficio. Feito isto era simples desparafusá-lo e jogá-lo na seção de reciclagem ou simplesmente no lixo, afinal parafusos não estão em falta e todos são descartáveis. Quando algum parafuso de índole bravia declarava seus pensamentos ao poderio sistemático, ouvia quase que mecanicamente a resposta da onisciente, A Mákina, que dizia: Parafuso insolente, parafuso não fala, parafuso trabalha, parafuso demente. Os mecanismos de defesa entravam em ação, A Mákina possuía inúmeros deles, o chicote psicológico ou os estabelecimentos para parafusos insanos eram e são as melhores opções. Ali o parafuso seria testado no fogo, ou transformava-o novamente em um parafuso comum, ou derretia-se o coitado com métodos perversos. Quando raro ocorria manifestações de rebeldia de inúmeros parafusos e neste momento é que a coisa realmente ficava estranha, uma vez que A Mákina possuía parafusos treinados e moldados que a protegiam. A bizarrice não poderia ser maior, parafusos exterminando parafusos para o bem de algo que explorava a ambos. E quando um parafuso idealista com um resquício de alma iniciava uma transformação na sociedade dos parafusos, dizendo-lhes: Irmãos, por baixo de sua grossa casca de metal existe algo que pode libertá-los. A coisa piorava, eram torturados, crucificados, apedrejados, assassinados em publico, mal falados, esquartejados, exterminados sem piedade alguma. Eram agora exemplos, nunca se rebelem contra A Mákina ou terão um fim parecido. Enquanto refletia sobre tudo isto, senti algo no peito que queimava, como uma estrela cadente. E sentimentos diversos que a tempos não encontrava tomaram, por poucos segundos, vida em meu peito de aço. E pensei em todos os parafusos que se quebravam em prol de algo que jamais desfrutariam, algo que não sonhavam, algo que os aprisionava. Pensei por longas horas, longos dias, longos meses e longos anos, sem contudo chegar a conclusão alguma. Busquei tomos antigos de parafusos sábios que refletiram sobre o mesmo problema e todo aquele sentimento ia se solidificando e tomando a forma de um diamante sem par. Iniciei então um processo subversivo de modelagem, buscando uma forma alternativa de viver e pensar para os incontáveis parafusos. E caminhando de localidade para localidade debatia o poderio da Mákina com meus semelhantes. O resultado não poderia ser pior, aqueles que não estavam conformados estavam robotizados. Não almejavam a mudança e dessa forma fui rejeitado, maldito entre os parafusos e segregado posto ao isolamento. Com o passar do tempo minhas voltas foram endireitando fui tomando uma nova forma, algo novo, algo quase inédito. Contudo saindo da velha forma absorvia uma outra, num processo sem fim. Afinal qual é a forma original que deveríamos ser? Adianta ser sozinho? Um prego entre os parafusos? Devo submeter-me a Mákina ou transformar a mesma? Sem parafusos não existe Mákina. E tomando posse da mascará ignóbil da transcendência rumei para o sul em busca de ajuda. Alguma coisa esta muito errada, o fim anda justificando os meios, mas logo não haverá meios para chegar ao fim.

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